Pessoal, só para, acredito eu, acrescentar um pouco de realidade fantasiosa (?), segue a transcrição de uma sentença de um juiz de Uberaba sobre a obrigatoriedade do voto. Muitíssimo interessante, pois ele não fez nada contra a posição que ocupa, pelo contrário, fundamentou com argumentos jurídicos sua decisão. Só resta saber se ele será penalizado pela corregedoria... Mas o interessante, que me veio agora, é que eu não vi isso ser noticiado na "grande imprensa", me avisem se eu estiver errado!
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Autos n. 387/2006
Vistos, etc...
O processo eleitoral finalizado em 29 de outubro deste ano foi marcado por inegável descrença por parte do eleitorado nacional. Tudo em razão dos inúmeros e mais recentes escândalos perpetrados pelos políticos brasileiros (“Mensalão”, “sanguessugas”, “dossiê tucano” e muito mais)!
Referida situação de descrença generalizada, não pode ser desprezada. Com efeito, “A norma constitucional não tem existência autônoma em face da realidade. A sua essência reside na sua vigência, ou seja, a situação por ela regulada pretende ser concretizada na realidade. Essa pretensão de eficácia (Geltungsanspruch) não pode ser separada das condições históricas de sua realização, que estão, de diferentes formas, numa relação de interdependência, criando regras próprias que não podem ser desconsideradas. Devem ser contempladas aqui as condições naturais, técnicas, econômicas, e sociais. A pretensão de eficácia da norma jurídica somente será realizada se levar em conta essas condições. Há de ser, igualmente, contemplado o substrato espiritual que se consubstancia num determinado povo, isto é, as concepções sociais concretas e o baldrame axiológico que influenciam decisivamente a conformação, o entendimento e a autoridade das proposições normativas.” (Konrad Hesse, A Força Normativa da Constituição, Tradução de Gilmar Ferreira Mendes, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1991, p. 14/15).
Fiel à lição de HESSE, portanto, urge promover um exame mais acurado dos pleitos de justificativas, considerando o número crescente de eleitores ausentes e, ainda, igual crescimento daqueles que só compareceram às urnas para consignar votação sem valor (brancos e nulos).
Mais ainda, necessário promover melhor e mais adequada interpretação à regra constitucional que obriga o cidadão brasileiro ao voto. É que, à evidência, referida obrigação colide com outras garantias constitucionais.
Com efeito, nos termos do art. 1º, da CF, que inaugura o Título “Dos Princípios Fundamentais”, “A República Federativa do Brasil”, formada pela união de Estados, Municípios e Distrito Federal, “constitui-se em Estado Democrático de Direito”, tendo como fundamentos a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa do homem, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político.
O “Estado Democrático de Direito”, mormente em face da realidade atual (confira com HESSE), não está conforme a regra constitucional que obriga o cidadão brasileiro ao voto.
Não bastasse isto, aludida obrigatoriedade também afronta sobremaneira certas garantias fundamentais do cidadão brasileiro (todas de aplicação imediata). Dentre elas, ressalto: a) a que consagra a liberdade de manifestação de pensamento (inciso IV); b) aquela que dispõe sobre a liberdade de consciência e de crença (inciso VI); c) a que ressalta a liberdade de convicção filosófica ou política (inciso VIII) e; d) ainda, até mesmo a que sedimenta a liberdade de locomoção no território nacional em tempo de paz (inciso XV).
O princípio fundamental da democracia, referendado pelas garantias fundamentais gizadas no item anterior, não permite mais que se imponha penalidade (multa) àquele que, por sua vontade, resolveu ausentar-se do processo eleitoral.
A norma constitucional que impõe obrigatoriedade de voto para os maiores de 18 anos (art. 14, I), sem sombra de dúvida, não está conforme os ditames referidos, sendo irrespondível a presença in casu de uma certa “inconstitucionalidade interna”.
A tese da inconstitucionalidade interna (Bachof), bem sei, não encontra amparo entre nós (doutrina e jurisprudência). Isto não significa, porém, que esteja vedada a possibilidade de interpretação consentânea com a realidade social e para efeito de harmonizar textos que, a princípio, encerram mandamentos conflitantes.
Ainda quanto ao conflito entre as normas, também foi violada a regra da isonomia constitucional (art. 5º, caput, da CF). Por ela, haveria igual “inconstitucionalidade interna”, conquanto está previsto no mesmo texto matriz tratamento desigual para analfabetos, adolescentes e setuagenários (confira alíneas “a”, “b” e “c”, do inciso II, do art. 14).
Mais ainda, ao dispor sobre a obrigatoriedade do voto, a norma impõe forma de “prisão comarcal” aos domingos, em total violação ao princípio da dignidade humana e ao sagrado direito de ir e vir do cidadão brasileiro.
Ante todo o exposto, inegável a presença de flagrante “inconstitucionalidade interna” que, todavia, não admite declaração por controle difuso (correção do impasse, conforme os doutos, só seria possível por meio de Emenda Constitucional). Referido empeço, porém, não inibe a possibilidade de uma interpretação harmonizadora, mormente com apoio na regra da proporcionalidade (“princípio dos princípios”, segundo Willis Santiago Guerra Filho).
Conforme o insuperável ROBERT ALEXY, “Los princípios son mandatos de optimización con respecto a las posibilidades jurídicas y fáticas. La máxima de la proporcionalidad en sentido estricto, es decir, el mandato de ponderación, se sigue de la relativización con respecto a las posibilidades juridicas. Si una norma de derecho fundamental con carácter de principio entra en colisión con um principio opuesto, entonces la possibilidad jurídica de la realización de la norma de derecho fundamental depende del principio opuesto. Para llegar a una decisión, es necesaria una ponderación en el sentido de la ley de colisión. Como la aplicación de principios válidos, cuando son aplicables, está ordenada y como para la aplicación en el caso de colisión se requiere una ponderación, el carácter de principio de las normas iusfundamentales implica que, cuando entran en colisión con princípios opuestos, está ordenada una ponderación. Pero, esto significa que la máxima de la proporcionalidad en sentido estricto es deducible des carácter de principio de las normas de derecho fundamental.” (ALEXI, R. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1993, p. 112).
Trocando em miúdos, pela regra da proporcionalidade, harmonizadas as normas constitucionais em conflito, revendo posição anterior, não estou mais convencido da necessidade de penalizar aquele que, por qualquer motivo, resolveu ausentar-se do processo eleitoral.
Por ausente, ademais, por extensão, poderia ser considerado aquele que, embora comparecendo, o fez para consignar voto nulo ou branco. Se assim é, considerando a premissa do “voto secreto” (cláusula pétrea), como seria possível identificar tal eleitor para, igualmente “ausente” (isonomia em sentido material), impor-lhe mesma penalidade?!
Ex positis, como não encontro no Texto Maior a determinação para que se imponha penalidade ao eleitor faltoso, forte nas “inconstitucionalidades internas” referidas acima, com olhos postos na realidade social em vigor e, ainda e, principalmente, com amparo no princípio da proporcionalidade, ouso inovar e rever minha posição anterior para, independentemente da motivação e comprovação, isentar de reprimenda pecuniária a eleitora ausente VIRGÍNIA DE SOUSA FREITAS, extensivos os efeitos desta aos justificantes nominados nos autos conexos de números 388/2006, 389/2006, 390/2006, 391/2006, 392/2006, 393/2006, 394/2006, 395/2006, 396/2006, 399/2006, 400/2006, 401/2006, 402/2006, 403/2006, 404/2006, 407/2006, 408/2006, 409/2006, 410/2006, 411/2006, 412/2006, 413/2006, 414/2006, 415/2006, 416/2006, 417/2006, 418/2006, 419/2006, 420/2006, 421/2006, 422/2006, 423/2006 e 424/2006 e que deverão ser apensados a estes. Sem custas.
P. R. Intime-se.
Uberaba, 08 de novembro de 2006.