terça-feira, fevereiro 27, 2007

Tô me guardando pra quando o carnaval chegar...

Então, em homenagem a essa data esquisita que é o carnaval, uma comovente narrativa.

Abraços a todos



“Já faz muito tempo, mas nem tanto tempo assim. Foi naquele carnaval de 1979, em que a Mocidade Independente de Gafanhoto Alegre ganhou o título nos pênaltis em cima da Nenê de Vila Madalena.

Eu ainda era moleque, não sabia muito da vida. Só sei que, antes do desfile, estávamos todos no barraco – hoje chamam de quadra – da Gafanhoto, preparando os últimos detalhes para o grande desfile. Um ano todo dedicado àquele momento especial. A apoteose de cada uma das vidas que caminhariam sobre o asfalto quente da avenida.

Era um dia mágico. As últimas marteladas eram acompanhadas pelo samba frenético da bateria, sempre presente, e dos gritos do seu Adalberto Negão, o puxador daquele samba-enredo, que a toda hora chamava “alô comunidade gafanhotense”.

As alegorias estavam quase prontas, e foi então que ela adentrou o recinto. Com penas de alguma ave exótica na cabeça, um fio dental curtíssimo e uma cobertura mínima no busto. Eu nada mais pude fazer à exceção de contemplá-la.

Minha alma de garoto exaltava-se na medida em que ela se aproximava. Sua fantasia estava pronta, e ela parecia a personificação do carnaval. Brilhante como um pote derramado de purpurina, sambando como uma lhama com cãibra, ela era a visão mais bela que minhas convicções poderiam supor.

Aproximei-me dela e puxei conversa. Katrilenny era a graça da moça. Nenhum objeto mais adequado à conversa do que o carnaval que estava por começar. Perguntei-lhe se estava empolgada com o desfile que logo começaria. “O carnaval é a minha vida”, disse , em tom alegre.

“A gente passa o ano todo trabalhando duro pra poder pagar a fantasia no carnaval”, continuou. “É o único luxo que temos, e precisamos batalhar por ele”. Nesse exato momento, Katrilenny me pareceu desdentada, mas acho que foi só impressão. Por um instante, retirei minha mente do barraco, e pensei no que a moça havia me dito. “É o único luxo que temos”. Mas quem decidiu que esse seria o único luxo? Quem determinou que ela teria que trabalhar o ano inteiro para gastar todos os seus ganhos em uma fantasia?

Achei que seria melhor deixar essas indagações de lado. Perguntei à moça se aceitaria uma cerveja. Ela recusou, afirmando que não fazia as coisas pela metade. Se bebesse, o faria até cair, mas era noite de avenida, e ela precisava desfilar. Em mais uma espécie de visão paranormal, Katrilenny me pareceu vesga.

Perguntei, então, em que ala desfilaria. Por coincidência, desfilaríamos na mesma ala. Ela finalmente deu sinais de que eu me daria bem naquela noite. “Parece que o destino ta preparando uma amizade legal pra nós dois”. Concordei e seguimos para fora do barraco.

Marcamos um encontro para o dia seguinte, mas ao chegar em casa, reparei que meu dinheiro já não mais estava em meu bolso. “Katrilenny, sua vagabunda”, pensei.

Eu já estava de saco cheio daquela mulata, e pouco me importava com o resultado daquela bosta de carnaval. Admiti meus próprios pensamentos, concluindo que aquela festa tinha como único objetivo liberar todo mundo pra cometer as sacanagens que não podem cometer durante o ano.

Que gente mais besta. Passa um ano inteiro pra poder beber, roubar e fazer uns filhos por aí sem sentir culpa. Eu é que não iria mais me entregar a essa falta de consciência.

Finalmente eu notava que não me importavam os atos. Assim como Katrilenny, eu somente queria praticá-los quando todos os julgassem adequados.

Foi então que tive uma idéia brilhante: montaria uma fábrica de lantejoulas. Assim, eu passaria o ano inteiro gastando o que ganhei no carnaval, enquanto esses pobres coitados passariam o ano inteiro se matando pra me dar o sustento através das milhões de lantejoulas que comprariam de minhas fábricas.

Fiquei pensando se conhecia alguém que me emprestasse um dinheiro para começar o projeto da fábrica. Acho que eu não conhecia ninguém. Também não pensei em ninguém para administrar meu projeto. Mas se o projeto era meu, por que eu precisava de alguém para administra-lo? Bom, agora, isso não vem ao caso.

Ocorreu que a Mocidade de Gafanhoto Gripado ganhou o carnaval, e passaram todos em frente de casa. Katrilenny sorrindo e me chamando para a festa. Não parecia mais desdentada nem vesga. Um rapaz que não gostava de carnaval disse que eu parecia cego. O desfile da campeã seria no dia seguinte. Deixei minhas idéias de construir fábricas de lado e parti com a multidão, embalado pelo som dos tamborins.

Se eu houvesse lido Maquiavel, entenderia que o povo, massa convencionada, vai com os vencedores, mesmo que não compreenda a vitória.

Neste carnaval, o enredo da Mocidade de Gafanhoto Gripado é em minha homenagem. Em homenagem a 1979, em que o filho pródigo voltou ao lar, ou seja, como eu voltei pro carnaval. Desfilarei como personagem principal em um carro que homenageia os deuses gregos.

Se eu tivesse ido à escola – a regular, não a de samba – talvez – eu disse ‘talvez’ – eu entendesse as críticas daqueles que diziam que a história do filho pródigo não se passava na Grécia, e era tema de uma religião monoteísta. ‘Monoteísta’... monoteísta é a mãe!

Não sei de mais nada. Só sei que o carnaval deveria durar o ano inteiro neste país abençoado por Deus e animado pela bateria. O samba é a minha vida, e o carnaval é a minha cara.”


Joel do Cavaquinho tem hoje 43 anos, ainda não sabe ler, nunca tocou cavaquinho, não entende de música nem de bateria, não se pergunta de onde vêm as lantejoulas que compõem sua fantasia, achou muito elegante ser entrevistado pela repórter “moça bonita da tv” e é considerado um símbolo da agremiação “Mocidade Independente de Gafanhoto Alegre”.



Obs: Sempre aprendendo... não postou, postei.

domingo, fevereiro 04, 2007

Mal estar social... (ou o dia em que aprenderemos a dividir nossos brinquedos)

Relendo meu texto anterior, me deparei com uma questão interessante. Com a falta de consciência de grande parte da população que se entrega facilmente aos "valores prontos" de qualquer instituição como se fosse um número de fast food, embasando a vida em mandamentos e fantasiando a rotina e o pós-morte, se tivessemos a realidade dos fatos, ou seja, se vendessemos a idéia de que não temos um paraíso depois de morrer, por exemplo, será que não estaríamos vivendo um caos?

Penso as instituições como um mecanismo de controle social. Lidam com todos aqueles que não conseguem chegar nas suas próprias conclusões e, por isso, necessitam de uma afirmação. Se esta massa manipulável não tivesse esta perspectiva da igreja, por exemplo, talvez pudessem supor que a vida não valeria a pena e que matar ou morrer é completamente indiferente, tendo em vista suas rotinas medíocres. Isto acarretaria no caos, visto que o mesmo bando que acredita em um Deus punitivo e no paraíso poderia acreditar no nada e viver impulsivamente um niilismo sem objetivo.

Claro que a minoria consciente nunca nos levaria ao fim, somente jogaria com as possibilidade da vida através de seus próprios valores. Assim, o consciente teria na vida a única chance de construir o paraíso pessoal, se depois da morte nada tivesse seria indiferente, ele quereria viver. Mas falamos da massa, será necessário acreditar em alguma instituição para ter sentido na vida? Será que pode ser benéfico este controle social imposto pelas grandes instituições? Elas podem estar regulando o mundo!

Por isso, talvez as instituições sejam necessárias no modelo vigente e esta criação de indivíduos homogêneos seja importante para a manutenção de uma sociedade (ao menos chamamos assim). Assim, teríamos as minorias formadas pelos conscientes (seja em grupos ou isolados) e a maioria manipulável. Esta é a tônica da sociedade atual e pode ser o resultado final da política do bem estar social baseada na coletividade: é necessário ter algumas minorias que servem de extremos reguladores e uma maioria homogênea para a manutenção de poder que pede um número cinco com fritas na igreja, um tênis nike na política e valores enlatados com gosto de isopor no super-mercado.

É medíocre, mas é o que chamamos de coletividade e de bem estar social. Será que na tentativa de despertar a consciência individual e ter uma sociedade egoísta* (no real sentido da palavra) não teríamos uma sociedade de maior "bem estar" do que esta?


*egoismo: valorizar o eu, ter valores próprios e não negar a própria consciência. Sem essa de não quero dividir meus brinquedos, por favor, chega a ser ridículo pensar desta forma.